Morada do Ceará, o estádio Carlos de Alencar Pinto tem em sua localização geográfica uma referência cuja história é indissociável à história do Alvinegro. O clube é margeado por um trecho do Canal do Jardim América, equipamento construído na década de 50 e que é um dos maiores símbolos do bairro, cortando praticamente toda a sua área.
Ali, às margens do Canal, entre a sede do Clube e a avenida Padre Cícero, diversas famílias vivem em condições de precariedade e instabilidade. São pessoas humildes, que, mesmo com tantas adversidades, tem no futebol e no vizinho ilustre, o Ceará, um pouco do ópio para aliviar o sofrimento de uma vida difícil e sofrida.
O canal, criado para receber as águas advindas das galerias pluviais da região, sofre com o depósito de lixo e de esgotos clandestinos. Isso faz com que, no inverno, seja comum o local transbordar e inundar as casas à sua margem, trazendo prejuízos materiais e à saúde dos moradores do lugar.
A existência do canal é lembrada de forma pejorativa na rivalidade das torcidas de Ceará e Fortaleza. Os Tricolores passaram a fazer alusão à proximidade da sede alvinegra com o local e deram ao Vovô a alcunha de “Time do Kanal” [sic]. O apelido, de início, não pegou bem entre os torcedores alvinegros, que se chateavam e não gostavam da referência em tom depreciativo.
Foi aí que, após anos do epíteto pejorativo, membros do Movimento Setor Alvinegro, uma das torcidas organizadas ligadas ao Clube, resolveu mudar o rumo desta aceitação de uma forma inteligente, solidária e até mesmo cultural. A torcida lançou, então, a campanha “Somos o Time do Kanal”, ação que visa resgatar a histórica relação entre a sede alvinegra e o canal, junto de seus moradores, bem como angariar fundos para ajudar os residentes daquela comunidade com itens de necessidade básica, como roupas, alimentos, materiais de higiene e afins. Foi lançada, para isso, uma camisa alusiva à campanha, no preço de R$ 50, com todos os lucros sendo revertidos para o auxílio da comunidade.
Iann Chagas, diretor de Marketing do Setor Alvinegro, é um dos que estão à frente da campanha. Segundo ele, além do viés solidário, principal foco do projeto, a ação visa reforçar a ligação entre o Ceará e o o torcedor mais humilde, já que o Vovô é, historicamente, conhecido como “o time do povo”. Para ele, estes laços históricos e sociais não podem jamais se apagar da história da instituição.
“Percebemos que muitos torcedores, principalmente no Twitter, já usavam a alcunha de forma debochada. Com isso, pensamos em fazer algo ainda melhor; pensamos em nos apropriar da alcunha pejorativa com orgulho. Afinal, o canal faz parte da nossa história e isso é motivo de orgulho! O Ceará, por sua maioria, sempre foi do povão e o canal também, então, por que não unir ainda mais a história e o povo? É como falamos: o clube abraçou o povo e chegou a hora do povo abraçar a história”, explicou.
Referência de outros clubes
A ideia de abraçar um apelido inicialmente pejorativo, segundo Iann, tem como referência outros cases de sucesso. Equipes como Palmeiras (Porco), Flamengo (Mulambada), Boca Juniors (Bosteros) e Newell’s Old Boys (Los leprosos) resolveram abraçar alcunhas inicialmente depreciativas e conseguiram massificar ainda mais sua torcida.
“Newell’s Old Boys e Rosário Central foram convidados para um amistoso, organizado por senhoras da sociedade em prol de um dispensário de leprosos da cidade. O Rosário não aceitou e acabou que só o Newell’s aceitou. Daí em diante, o torcedor do Rosário passou a chamar o torcedor do Newell’s de “leprosos” e o do Newell’s, por sua vez, passou a chamar o torcedor do Rosário de “canallas” [canalhas]. O torcedor do Newell’s abraçou a alcunha pejorativa e é isso que a gente quer fazer, como o Palmeiras já fez, o Boca também. Inclusive tem um canto na torcida do Newell’s sobre isso que é bastante interessante e diz ‘Si muero que sea de lepra’ [Se eu morrer, que seja de lepra]. É muito bacana, os caras vivem realmente isso, lá”, pontuou.
Se o Ceará, assim como Flamengo, Boca Juniors, Newell’s Old Boys e Palmeiras, será um novo case de sucesso de torcida que abraça um apelido pejorativo só o tempo dirá. O fato é que, já agora, ações como estas despertam um adormecido sentimento de orgulho e autoestima nos humildes moradores das margens do Canal. Um lugar desamparado de gente anônima, sofrida e que espera do poder público e até mesmo de Deus uma ajuda que possa mudar suas vidas, lhes trazer mais dignidade. Enquanto este dia não chega, seguem na luta, conversando em suas calçadas, com seus olhos cansados mas sempre esperançosos. Vivendo, sobrevivendo… Porém, sempre apaixonados pelo seu vizinho preto e branco, a grande unanimidade do lugar, afinal, o Ceará é ou não é o time do “Kanal”?
Compra de camisas
Os interessados em adquirir as camisas da campanha devem entrar em contato com os organizadores da ação via Instagram ( @msetoralvinegro ), através do direct. A camisa custa R$ 50 e a fase de pré-venda já foi iniciada.